O Design da Pastelaria Semi-industrial Portuguesa


As palavras design e semi-industrial, que constituem o sub-título deste livro e que aqui se encontram sublinhadas, são reveladoras da nossa abordagem, como designers, ao mundo da pastelaria portuguesa. O projecto Fabrico Próprio teve como ideia impulsionadora a introdução de uma nova perspectiva sobre esta actividade, sem ideias pré-concebidas, sobre o que representa para a classe profissional ou a importância histórico-cultural que  tem no seio da sociedade portuguesa. Se alguma coisa podemos constatar neste projecto – através da pesquisa para o livro, nas múltiplas conversas e reuniões que tivemos com inúmeras pessoas (especialistas ou não), nos comentários deixados no nosso sítio da Internet – é que os portugueses são mesmo obcecados por bolos…

Mas estes bolos nenhum português se atreve a fazer em casa. A?nal, tal não é sequer necessário, pois sabe que pode confiar no trabalho de mestres-pasteleiros e outros profissionais do ramo.

Um bolo de pastelaria é, para nós, um produto de consumo como qualquer outro. Um produto pensado tendo em conta elementos como ‹ingredientes/componentes›, ‹forma (contentor e conteúdo) e acabamento/decoração›. Mas também, ao ser diariamente produzido em massa (sem qualquer ironia na escolha da palavra), um produto pensado em termos de embalagem/apresentação, ponto de venda/armazenamento, tamanho/dose, preço/valor…

Como tal, todos estes elementos que constituem o ‹produto-bolo›- aos quais se junta o próprio nome -, são parte integrante do processo que rege o seu fabrico. Este é em tudo semelhante ao próprio processo de design, a chamada ‹metodologia projectual›. Uma definição convencional do termo design diz que ‹o processo de design acontece quando tecnologia, arte e cultura convergem de modo a resolver questões da vida quotidiana› (in Busch, Akiko, The Uncommon Life of Common Objects. Nova Iorque, Metropolis Books, 2004, pg. 16.)  Facilmente, com os conteúdos deste livro, se pode fazer o paralelismo entre a pastelaria e esta definição, provando que os bolos constituem um exemplo de produtos projectados, ou objectos de design, de pleno direito.

Estes produtos, concebidos segundo um método assente em processos de natureza projectual, são ainda desenvolvidos de acordo com processos de manufactura industrial. É precisamente na atípica junção destas duas palavras que reside a nossa escolha do termo semi-industrial para caracterizar este tipo de pastelaria. Vamos por partes. A origem da palavra manufactura, ou ‹fazer manual›, descreve a maneira como se preparam estes bolos de consumo diário. Todas as formas finais são conseguidas pelo manuseamento sábio de utensílios, ingredientes, massas, cremes e coberturas, por um ou mais profissionais, sendo a decoração e os acabamentos de cada bolo realizados de forma individual, de acordo com uma receita específica.

Podemos assim afirmar que todos os dias, em Portugal, cada bolo é fabricado, à mão, seguindo uma receita – se quisermos, segundo um projecto inicial – cuja autoria, salvo raríssimas excepções, desconhecemos.

Por não haver essa autoria – nem, ao fim de tantos meses de pesquisa, facilidade em encontrá-la e identificá-la – podemos considerar que a maioria destes produtos são manufacturados a partir de uma receita tradicional, em tudo semelhante aos produtos de artesanato. Contudo, não se verificam nesta produção pasteleira outros factores que caracterizam o artesanato como actividade de produção material. O uso de matéria-prima local ou regional, presente em bolos como os típicos doces algarvios, confeccionados com amêndoa ou alfarroba (ingredientes principalmente encontrados e identificados com esta região), não é tido em conta no fabrico dos exemplos presentes neste livro, que são produzidos a partir de cinco ingredientes-base (farinha, água, ovos, manteiga, açúcar) encontrados em todo o país.

Do mesmo modo, a identificação de um produto com um ‹local› é verdade apenas para os chamados bolos regionais – como os Fofos de Belas, os Pastéis de Tentúgal ou as Cristas de Galo de Vila Real – mas não é manifesta nos outros bolos de pastelaria, mesmo que muitos deles sejam originários de uma localidade ou região específica. Um exemplo disso é o Jesuíta, cuja origem em Santo Tirso é tão desconhecida quanto irrelevante para a maioria dos seus apreciadores. Outro factor são as variações de cada bolo, criadas individualmente por cada pasteleiro, independentemente da receita original – sem colocar em risco a essência do produto. Um Palmier continua a sê-lo, seja simples, coberto ou recheado – e não deixa de o ser apesar dos mais excêntricos ingredientes que lhe possam ser acrescentados. Existe, por isso, espaço nesta tradição – ou projecto inicial – para a criatividade de cada um.

Assim sendo, estes produtos são feitos à mão, de acordo com uma receita que tem menos de tradicional do que poderíamos pensar à partida. E quando observamos um pouco melhor o processo segundo o qual são produzidos, verificamos que se justifica o termo industrial para falarmos de manufactura. Usamos este termo como referência directa à panóplia de aparelhos e ferramentas (amassadeiras, batedeiras, câmaras frigoríficas, fornos, etc.), ingredientes (margarinas específicas, ovos pasteurizados…) e métodos sequenciais de preparação (amassar, reservar, estender, voltar…) que servem no fabrico destes bolos.

Para uma melhor compreensão da escala dos aparelhos eléctricos acima referidos, podemos revelar que estes incluem batedeiras capazes de bater homogeneamente 60 litros de preparado de massa em simultâneo, frigoríficos de conservação com 500 litros de capacidade ou fornos capazes de atingir os 400°C.

Será ainda pertinente falar sobre as duas tipologias de estabelecimentos que fabricam estes produtos. As pastelarias de fabrico próprio, onde os bolos diariamente preparados se destinam ao consumo no local, e as casas de revenda, onde os bolos são preparados, geralmente em maior número, com vista a uma posterior distribuição junto de pastelarias, cafés e outros estabelecimentos de restauração que não possuam esse fabrico. Tanto nas pastelarias de fabrico próprio, como nas casas de revenda, a maquinaria, os procedimentos e tipo de ingredientes são semelhantes. A diferença na produção de cada uma está na decoração, na qualidade e/ou especificidade dos ingredientes e na apresentação final dos produtos elaborados. Na nossa pesquisa, constatámos que os estabelecimentos com fabrico próprio têm de modo geral um maior cuidado, um maior primor, em todas as fases do processo de fabrico e venda dos produtos. Nestes estabelecimentos, o pasteleiro-chefe – o produtor – cria uma ‹assinatura› que o ‹balcão da casa›- o cliente – se foi habituando a apreciar. Isto faz com que muitas vezes uma particular pastelaria se torne uma referência para determinado bolo e o ex-libris de um bairro ou cidade portugueses.

Esse primor aplicado a uma manufactura industrial prova, na nossa opinião, que as conotações negativas frequentemente associadas ao termo industrial nos universos alimentar e gastronómico podem em muitos casos ser infundadas, pois acreditamos que existe excelência, rigor e dedicação no fabrico destes produtos. Podemos concluir que os bolos de fabrico próprio, em Portugal, não são feitos aos milhares, por máquinas gigantescas controladas por operários em unidades fabris anónimas. Não é nisso que pensamos quando os compramos nem quando os comemos. Mas também não pensamos que são feitos religiosamente por uma pessoa idealizada que, a partir de uma secreta receita centenária, produz apenas um reduzido número de exemplares, que serão consumidos por poucos, num respeitado ‹santuário› da doçaria portuguesa.

Daí a escolha do termo semi-industrial para este tipo de produção alimentar: todos estes bolos são manufacturados por pasteleiros cuja face desconhecemos, mas em cujo talento confiamos. Não são feitos por máquinas, são produzidos com máquinas. Não são produzidos em grande escala, apenas reproduzidos em número suficiente para encher balcões todas as manhãs. Não são conventuais nem regionais, são nacionais – e alguns são mesmo globais. O projecto diário desta pastelaria é mais simples do que a rica tradição da cozinha e gastronomia portuguesas, mas mais único e valioso do que quaisquer preparados sintéticos que a indústria alimentar nos pode vir a oferecer.

Ainda relacionado com o facto de sermos designers, podemos dizer que esta temática nos interessou também por outras componentes referentes ao ciclo industrial: o tempo de concretização dos produtos, as formas, os intervenientes, os consumidores, a sociabilidade do consumo, os locais e por último, o legado cultural, até agora não devidamente documentado, fizeram com que nos tivéssemos dedicado de corpo (agora com algum peso a mais) e alma a este universo. Ao contrário de um projecto para um objecto mais complexo, que pode levar muitos meses (por vezes anos) até chegar a um consumidor final, no caso do produto-bolo a transição entre projecto e objecto final tem tempos de trabalho bastante reduzidos, permitindo uma visualização e análise rápida dos resultados num circuito de consumo. Falamos assim quando falamos de fabrico próprio, de produtos de projecto rápido, fabrico rápido e consumo rápido (ou rapidíssimo!), pelo que encontramos neste universo material um verdadeiro manancial de inspiração, de riqueza criativa e de possibilidade para a inovação, com ainda muito por explorar.

Ao encontrarmos uma ligação entre esta actividade e o processo de design, quisemos ainda criar pontos de contacto entre duas áreas sem, aparentemente, qualquer relação entre si. Para nós, a verdadeira inovação acontece quando o pensamento criativo é aplicado a outras áreas da produção de riqueza ou conhecimento, possibilitando verdadeiras intersecções de disciplinas, indústrias e culturas. E é nestas intersecções que os horizontes se abrem, as surpresas acontecem e os mais inesperados, surpreendentes e significativos resultados são produzidos. Gostaríamos de pensar que este livro, e o projecto que o rodeia, pudesse ser uma dessas valiosas intersecções.

Texto originalmente publicado no livro “Fabrico Próprio: O Design da Pastelaria Semi-industrial Portuguesa” © Frederico Duarte, Pedrita (Rita João e Pedro Ferreira).

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