O Futuro Projectado por Jacques Tati

Madame Arpel e Vizinha. Foto: Direitos Reservados
Madame Arpel e Vizinha. Foto: Les Films de Mon Oncle

Vemos “O Meu Tio”, que esta semana é reposto com cópia nova, e não podemos deixar de nos emocionar: o mundo moderno é hoje uma nostalgia.

Numa frase, Madame Arpel desmonta “O Meu Tio”: “Do que o meu irmão precisa é de um objectivo. De um lar. De tudo isto.” “Tudo isto” é a Villa Arpel, a casa moderna — o lar “bourgeois” — onde vive a irmã de Monsieur Hulot, o seu dedicado marido e o seu aplicado filho, Gérard. Quando fala de objectivo, Madame Arpel quer dizer um motivo que o faça abandonar o seu estilo de vida diletante, os seus modos infantis e a sua persistência em viver de acordo com os hábitos populares na antiga praça da vila onde vivem. Para ela, esse motivo reside na vizinha do lado, a das “toilettes” elegantes, do casarão vazio e do jardim manicurado. Para ela, o “arranjinho” com uma mulher moderna e um emprego na fábrica de plásticos do marido trarão facilmente Hulot para o mundo onde vivem, e onde querem viver. O termo original usado por Mme. Arpel, “un but”, “objectivo”, traduz-se também como fim, propósito ou intenção final. No novo e extraordinário mundo moderno tudo tem um propósito, cada elemento da sociedade serve um fim. O pequeno Gérard deve comer o ovo esterilizado que a mãe lhe serve, crescer e estudar, o peixe da fonte deve ligar-se apenas quando há visitas, o jarro deve saltar, o copo deve partir, a porta da garagem deve abrir e fechar através da intersecção de um corpo (do salsicha à empregada medrosa) com o feixe electro-magnético. Da “máquina de habitar” que é a Villa Arpel aos intocáveis automóveis, da escola à fábrica (que, estranhamente ou não, aparentam ser o mesmo edifício), da nova cidade ao aeroporto de Orly, tudo transparece o mesmo desejo de modernidade e confiança no futuro que se sentia na Europa de 1958.

A vida moderna
Treze anos após o fim da II Guerra Mundial, a Europa (dos dois lados da Cortina de Ferro) está em reconstrução física e económica, sob o desígnio da vida moderna. Cidades inteiras são erguidas das cinzas, das demolições de bairros antigos ou simplesmente do nada para albergar os novos cidadãos que irão construir o novo-velho continente, assim como as suas famílias e os seus filhos – os “baby-boomers” – que darão corpo à grande classe média do século XX. A nova arquitectura do aço, do vidro e do betão, o chamado “estilo internacional” ou “estilo americano”, é agora aplicada em todo o mundo, sem hesitações. As novas casas, fábricas e edifícios públicos são preenchidos com novos electrodomésticos, ferramentas altamente especializadas e dispositivos eléctricos e electrónicos que têm como objectivo principal facilitar a vida da família moderna – que se quer limpa, higiénica, arejada, descomplicada e, acima de tudo, funcional. Os dois últimos adjectivos combinam-se para criar a nova estética moderna; esta é incorporada no novo mobiliário, nos novos aparelhos de comunicação, nos novos produtos de consumo, e mesmo na “nova tipografia”, para dar forma a este novo mundo.

No entanto, Hulot, o tio do pequeno Gérard, tem um problema. Ele não parece ter um “fim”, não se consegue enquadrar em “tudo isto”. Encontra-se, como os cães que o acompanham durante o filme, entre o mundo antigo da sua casa irregular na praça do “petit café”, das carroças e dos vendedores de rua, e o mundo moderno da casa da sua irmã, da fábrica do seu cunhado e dos automóveis que circulam ordeiramente — mesmo quando são importunados pelas crianças, a outra ponte entre estes dois mundos. Como o seu sobrinho Gérard, aborrece-se perante a vida “desenhada” da sua família e da fábrica em que é colocado, que não permitem segundos usos e interpretações – quando isso acontece, tudo corre desastrosamente mal. Hulot prefere o conforto e a espontaneidade dos modos antigos, das relações entre vizinhos, da leveza da sua bicicleta VeloSolex. E estranha tudo o que de novo o confronta.

Monsieur Hulot e o sobrinho Gérard. Foto: Les Films de Mon Oncle
Monsieur Hulot e o sobrinho Gérard. Foto: Les Films de Mon Oncle

E é o confronto de Hulot com estes “elementos modernos” que torna “O Meu Tio” num filme recorrente na educação de um designer e de um arquitecto, assim como importante para qualquer pessoa que tenha interesse na nossa cultura material. Este filme, que se encontra na charneira entre o mundo tradicional e o mundo moderno, precede “Playtime”, a obra-prima que Tati fará nove anos depois e onde, numa escala exponencialmente maior, aprofunda esta nova maneira de viver. Tati, com Hulot, revela uma mestria inigualável na relação entre o homem e os objectos; vindo da tradição do burlesco e do filme mudo, amplia esta relação com interacções ingénuas e hilariantes, usando agora o som, a cor e estes novos e misteriosos objectos para criar “gags” que perdurarão na nossa memória. Em “O Meu Tio”, Tati usa erradamente esses objectos, em primeiro lugar, para criar os “gags”, retirando-lhes a sua função principal, para a qual foram concebidos, e atribuindo-lhes uma função cómica. Mas faz mais do que isso: ao recusar sentar-se na cadeira “scoubidou”, ao partir o copo que não salta, ao criar uma salsicha de mangueira, ao atirar da janela o isqueiro do carro com que acende o seu cachimbo, e finalmente ao revirar e usar o “canapé lit haricot” do seu cunhado para dormir, está a fazer um comentário sobre o mesmo mundo em que não se consegue enquadrar. Fá-lo de forma muito leve, quase infantil; neste filme, como nos seus outros filmes, não há lugar para dramatismos. A sua “flânerie” pelo mundo moderno envolve não só a observação deste mundo, como o fizeram os escritores do séc. XIX, mas o efectivo manuseamento dos seus artefactos. E este manuseamento já não contém o deslumbre de antes: face à realidade que o rodeia, construída tanto pelos diálogos telegráficos e formais dos indivíduos, como pelos objectos e bens que possuem, Hulot conserva a nostalgia doutro tempos. Procura na simplicidade das relações humanas, das coisas usadas, das surpresas da natureza, a réstia de individualidade que parece desaparecer no meio do “tudo isto” artificial, projectado por alguns homens, fabricado em massa por máquinas e usado por todos.

Mme. Arpel. Foto: Direitos Reservados
Mme. Arpel. Foto: Les Films de Mon Oncle

Nada dura, nem o sonho
100 anos depois do nascimento de Tati, e 49 anos depois da primeira exibição de “O Meu Tio”, as coisas já não são assim tão simples. A França, e a Europa que se reconstruía em 1958, progrediram, envelheceram, mudaram. O fim das ideologias, a fragilidade do modelo social europeu, o multiculturalismo, a globalização, a revolução digital, as preocupações ambientais e mesmo os novos conflitos religiosos levaram a uma desilusão para com o mundo moderno. A hiperfuncional Villa Arpel nunca se materializou: vivemos inegavelmente rodeados de tecnologia, de objectos e produtos de consumo, mas a forma como estes são projectados, vendidos e vividos mudou; os homens da geração de Gérard, os seus filhos, e os filhos destes tornaram-se mais cínicos, desiludiram-se, mas também se conformaram. Nada mais dura para sempre, nem sequer o sonho do progresso.
Hoje, o termo “moderno” é associado mais a um estilo do que a esse sonho. Quando vemos “O Meu Tio” todos estes anos depois, não podemos deixar de nos emocionar com as formas arrojadas das cadeiras em estrutura tubular, com o suco do bife, com as viaturas “streamlined”, com os letreiros em itálico e sem serifa da escola e da fábrica. A nostalgia deste filme está agora, para nós, no próprio mundo moderno “sobredesenhado” que não voltaremos a viver ou em que nunca vivemos, e que Hulot nos apresenta de forma tão singular. Podemos tentar recriá-lo, rodeando-nos de mobiliário, roupas ou outros artefactos da época (em versão “vintage” ou em reedições), ou vivendo e visitando edifícios, bairros ou cidades construídos segundo estes princípios, mas sabemos que estamos a fazer parte de um mero exercício de estilo. Da mesma forma, várias vezes os erros do nosso passado moderno vêm sendo corrigidos pelas gerações seguintes, ao nível urbano, habitacional, ambiental ou interpessoal, mostrando como a voracidade do progresso colectivo por vezes não se coadunou com as necessidades individuais de quem o construiu.
Quando ao mundo tradicional de onde Hulot não queria sair — o dos sorrisos e rebuçados trocados com a filha da porteira, o do jogo da macaca, o do varredor de rua —, ele nunca nos abandonou. Brincamos, compramos, trabalhamos, apaixonamo-nos e vivemos hoje no que resta dos dois universos do filme; a nossa história comum, e as nossas histórias pessoais, acumulam-se em prédios, ruas e praças centenárias, mas também no que resta dos planos, edifícios e objectos desse novo mundo (que será também ele centenário um dia). A preservação da nossa cultura, identidade e património materiais engloba agora tudo o que ficou para trás, informando o nosso presente, e alimentando o nosso futuro.
“Vejam o que nos está a acontecer”, observou Tati em 1958, numa entrevista à revista Time. “Esta especialização. A despersonalização está a tirar todo o significado humano à nossa vida quotidiana. Um homem costumava orgulhar-se da forma como conduzia. Agora um carro guia-se sozinho. Uma mãe costumava orgulhar-se dos seus bolos. Agora eles fazem-se sozinhos. Um rapaz costumava-se orgulhar das coisas que inventava para brincar. Agora está soterrado em brinquedos feitos em fábricas. É triste, não? Sim.” É talvez essa a função, o “fim” de Monsieur Hulot neste filme, para além de reunir um pai com o seu filho: dizer-nos que o que persiste pode ser tão ou mais importante que o que se projecta.

O pequeno Gérard e a Cadeira de Baloiço. Foto: Direitos Reservados
O pequeno Gérard e a Cadeira de Baloiço. Foto: Les Films de Mon Oncle

[c a i x a]

O estilo triunfante
O estilo triunfa sobre a utopia moderna. Três peças de uma produção supostamente democrática dos anos 50 do séc. XX dá lugar à produção artesanal elitista do início do século XXI. À venda ao público, custam entre 17 mil e 26 mil euros.

Para dar corpo ao seu novo e moderno mundo, Jacques Tati trabalhou, a partir de 1953, e até à data da sua morte, em 1982, com Jacques Lagrange, com quem partilhou a criação dos cenários, da direcção artística e dos argumentos de quatro dos seus principais filmes: “Trafic” (1971), “Playtime” (1967), “As Férias do Sr. Hulot” (1953) e “O Meu Tio”. Neste filme, Lagrange criou a Villa Arpel e os outros cenários modernos do filme recorrendo a recortes de revistas e às últimas tendências da arquitectura e das artes decorativas. Construída num estúdio em Nice (os outros dois locais de filmagem foram o centro histórico da vila de Saint-Maur-des-Fossés e a localidade de Créteil, hoje “banlieue” parisiense), esta casa é o exemplo acabado da atenção pelo detalhe partilhada pelos dois.

Cada elemento foi construído ou escolhido pelo seu valor representacional, em detrimento da função: do forno-miniatura ao mini-secador de roupa, dos tapetes circulares aos óculos do primeiro andar, dos apoios para os copos da “garden-party” ao excêntrico mobiliário, cada faceta da Villa Arpel enfatiza a estética contemporânea do filme, que se sobrepõe ao uso ou ao conforto dos seus habitantes. Devido à singularidade e relevância do universo que (re)cria, esta casa — juntamente com a megalómana “Tativille” de “Playtime” — tem sido alvo de estudo em vários livros, documentários e exposições, tanto na esfera do cinema, como nas esferas do design e da arquitectura. Reconstruída à escala 1:10 para a exposição Tatirama em 2002 (Paris) e 2003 (Roterdão), e à escala real em Janeiro deste ano, na feira Salon Futur Intérieur 2007, em Paris, continua, todos estes anos depois, a simbolizar um importante marco da intersecção entre o cinema e as “disciplinas do projecto”.

Dentro da casa, e à excepção das cadeiras “Scoubidou” (feitas em estrutura tubular e fios de plástico para costas e assento) de Pierre Guariche, Michel Mortier et Joseph-André Motte (os designers franceses fundadores do A.R.P., Atelier de Recherche Plastique), dos candeeiros de Serge Mouille e de Pierre Guariche e das cerâmicas de Pol Chambost (o célebre vaso Dubrocq da Madame Arpel), todo o mobiliário foi concebido por Tati e Lagrange, tendo em conta as supostas necessidades da família, mas também os seus requisitos. O “canapé lit haricot” em que Hulot se deita no final do filme, por exemplo, são na verdade quatro peças diferentes, construídas de forma a estabelecer diferentes relações de escala e interacção com os actores; o espectador mais atento reparará também na franja que só aparece na altura em que Hulot o vira de lado, fazendo-o parecer ainda mais despropositado.

Este importante “inside” do filme é dado por Bruno Domeau e Philippe Pérès, os jovens fundadores da empresa de mobiliário francesa Domeau et Pérès, editores do que chamam “a alta costura do design”. No Salon Futur Intérieur 2007 lançaram, em plena Villa Arpel reconstruída, reedições do “Canapé Lit Mr. Hulot Haricot” e de outras duas peças concebidas por Tati e Lagrange: a “Rocking Chair Mr. Arpel” e o “Canapé Vert Mme. Arpel”. Cada uma destas reedições pretende recriar uma peça-chave de mobiliário do filme, protagonistas essenciais de três das suas cenas. Não são encaradas como reproduções fiéis, mas como reinterpretações baseadas em estudos de prototipagem, escala e materiais, em que o mais importante, além de reproduzir objectos, será “materializar” o espírito de Tati. Porém, este espírito-tornado-assento não está ao alcance de todos: cada reedição compreende uma série limitada de oito exemplares numerados, fabricados artesanalmente em França e com recurso a materiais de qualidade. Encontram-se à venda desde Janeiro, com preços entre os 17 mil e os 26 mil euros.

Mais uma vez o estilo triunfa sobre a utopia moderna. Não é difícil entender o paradoxo que estas três peças enunciam: a produção industrial democrática e acessível dos anos 50 do séc. XX dá lugar à produção artesanal elitista e acessível a poucos (e atenção, já não restam muitos exemplares) do século XXI. Embora o “l’air du temps” de “O Meu Tio” já há muito se tenha esvanecido, haverá sempre quem o queira trazer de volta — ou pelo menos a algumas das suas estrelas.

www.domeauperes.com

Publicado originalmente no suplemento Ípsilon do jornal Público de 20.04.2007


Comments are closed.